05 abril 2008

Anos de chumbo

Vesti azul
Urariano Mota

Quando vem o primeiro de abril, sempre me lembro do que chamavam a revolução de 31 de março. A história oficial sempre antecipou em um dia o golpe de 64 para evitar o ridículo. E aqui e ali volta para mim o terror daqueles anos na forma de pessoas e canções. Lembro, por exemplo, de Eremias Delizoicov, a quem conheci na Escola Técnica Federal de São Paulo. O menino que eu vira em 1968 não anunciava o cadáver de 18 anos, perfurado de balas, o rosto irreconhecível porque uma só ferida, os cabelos tão úmidos, tão grossos por coágulos de sangue, que davam a impressão de flutuar no chão seco. Nada havia naquele cadáver que lembrasse o jovem que eu conhecera. Eremias não era aqueles olhos apertados, a boca aberta à procura de ar, a lembrar um afogamento.

“Vesti azul, minha sorte então mudou. Vesti azul, minha sorte então mudou...”, não, não pensem que enlouqueci. Há uma coerência entre essas canções despretensiosas, alegres, leves, e os cadáveres dos terroristas na ditadura militar. Não pensem jamais que vicejam hinos do Drácula em épocas sombrias, de repressão. Pelo contrário.

Na Escola Técnica Federal de São Paulo, Eremias Delizoicov foi a minha salvação no meio daqueles meninos burgueses, lembro. A Escola Técnica daqueles anos possuía alunos da elite econômica do Brasil. Certo dia, percebi que um jovem gordo, que se vestia com blusões de couro tão natural como uma segunda pele, era filho do dono da Aços Villares. E eu então me encolhi mais em minha camisa de algodão, nos 10 graus do inverno paulistano. A conversa daqueles alunos toda era sobre carros, motos, motores, esportes.

Onde um amigo, uma alma, um leitor, um irmão que entendesse e falasse sobre Platão, Descartes, os grandes inventos da humanidade, a música de Chopin? Quando me perguntavam sobre máquinas, potências de motores, eu lhes respondia que mais me preocupava O Discurso do Método. Um ridículo imenso caía então sobre o nordestino que não possuía nem bicicleta.

“Pensam que a pobreza é lixo, e que rapaz pobre não tem coração”. Não, não pensem que enlouqueço ao lembrar essas canções melosas, adocicadas, daqueles férreos anos. “Estava na tristeza que dava dó, vivia amargamente e andava só”, lembro, tão nitidamente quanto lembro a diferença, o contraste dessa canção com a vida que não poderia brotar, de um mundo reprimido naqueles anos. “Que azul é a cor do céu, e do seu olhar também... Vesti azul, minha sorte então mudou”, cantava Simonal. Por não ter camisa azul, eu procurava o azul do espírito. Uma coisinha estúpida, a procurar uma alternativa que não fosse pular fora da vida.

Ao escrever agora, não resisto ao impulso de desejar o impossível, que fôssemos mais maduros em 1968. Se não maduros, pelo menos profetas, leitores do futuro, videntes.

A morte torna as pessoas mais razoáveis e transparentes à humanidade. Se não todas as mortes, pelo menos algumas dão um vulto a essas pessoas que antes não víamos. Eremias morreu como um herói, permitam-nos dizer. O aparelho onde estava caíra. Fora entregue por um outro jovem preso, que não suportara as torturas. Cercado por forças do Exército, Eremias sozinho resistiu. Resistiu à bala, sem nenhuma esperança. A distância nos permite dizer que ele, naquele tiroteio cerrado, chamava a atenção dos demais companheiros fora. Que a casa não era mais segura, para ninguém. Outra hipótese que nos ocorre é a de ele saber que não havia mais saída, se caísse vivo. A saber, não haveria mais saída de continuar vivo, sem delatar.

Talvez ele tenha querido evitar, no fim e enfim, ser uma coisinha estúpida, a balançar nervoso numa câmara de tortura. Algo estúpido, tão estúpido quanto um “Vesti azul” de primeiro de abril.
(Publicado no Direto da Redação, em http://www.diretodaredacao.com/site/noticias/index.php?not=3825)

Um comentário:

A VOZ DA VITÓRIA disse...

O texto é de uma intensidade marcante. Apesar de revelar um lado negro da história política deste País, este nos ajuda a refletir o quão rico foi o envolvimento daqueles que tombaram na construção de uma via democrática e nos joga a pensar o lado perene, ao mesmo tempo enérgico, do sentimento da perda.
PELA ABERTURA IMEDIATA DOS ARQUIVOS DA VERGONHOSA DITADURA MILITAR!

Lissandro Nascimento.