15 fevereiro 2010

Carnaval: o efêmero e o permanente

Carnaval e arte pública
Raul Córdula*

Que carnaval é arte pública todos sabemos, até porque a palavra “arte” pode ter conotação de transgressão de adultos ou traquinagem de meninos. Ou ainda, porque o carnaval, sendo a maior manifestação da alegria humana, nos induz a representar, isto é, a teatralizar nossas emoções, e, assim fazer arte na rua. É claro que há diferença entre arte pública e arte de rua, de antemão arte pública pertence à cidade como patrimônio, tende a ser permanente, como uma escultura, um mural, uma fachada de edifício, um detalhe arquitetônico, e a arte de rua é sempre efêmera (sim, existe arte efêmera) como são as performances contemporâneas, o teatro de rua e as manifestações carnavalescas, por exemplo.

Então? Como o carnaval pode ser arte pública se ele é efêmero? Respondo: Vejam as Fantasias, as vestimentas dos Caboclos de Lança e os Bonecos de Olinda, que são perenes no carnaval e fora dele, existem como objetos e esculturas da melhor qualidade e significado, e vejam como exemplo vivo e imediato a decoração do Carnaval de Olinda, esta que está agora instalada no Sitio Histórico, criada e confeccionada pelo mamolengueiro Fernando Augusto Gonçalves, o homem do Mamolengo Sorriso, através da mão de obra especializada dos jovens que integram a Fábrica de Carnaval.

Acho importante lembrar que Fernando Augusto é um homem de trânsito internacional até hoje amigo de Jacques Lang, Ministro da Cultura no Governo de Mitterrand, que o recebe em casa, e detentor do Prêmio Ordem do Mérito Cultural de 2009.

Não é possível, porém, deixar de dizer que a decoração da cidade do Recife, de autoria do arquiteto Carlos Augusto Lira e de sua filha Joana Lira é também uma maravilha para os olhos, e nisto nós temos muita sorte porque temos oportunidade de fruir tanta beleza do magnífico Galo da Madrugada e dos desenhos alusivos a Vicente do Rego Monteiro e Getúlio Cavalcanti que embelezam a cidade.

Conheço este assunto de decoração carnavalesca desde que participei no carnaval carioca de 1966 da equipe que venceu a concorrência da decoração da passarela do carnaval que na época era realizado na Avenida Getúlio Vargas, no trecho em frente à Candelária, antes do sambódromo. Aquele foi um palco dos inesquecíveis e belos espetáculos, algo jamais feito depois, porque além do espetáculo visual havia o espetáculo da paixão pelas Escolas de Samba que não é hoje como naquela época, quando o turismo afetava muito menos do que agora. Trabalhei na equipe do grande cenógrafo pernambucano Arlindo Rodrigues que, concorrendo com os também gigantes Fernando Pamplona, Plínio Cipriano e Mário Monteiro ganhou o concurso naquele ano, com direito a torcida do povão que fazia o carnaval.

Todos estes “carnavalescos”, que não eram ainda chamados assim, faziam parte da tradição de cenografia que existe até hoje e vem dos teatros de revista, da ópera, do balé e do teatro erudito que existe no entorno do Teatro Municipal, que envolve a Cinelândia e a Praça Tiradentes, onde existe até hoje o Teatro João Caetano. Portugueses e filhos de portugueses, eles foram a base de nossa cenografia de televisão e da decoração dos carnavais cariocas. Arlindo Rodrigues era um deles, um dos melhores.

O sistema de montagem era o mesmo que se faz no Recife, temas desenhados como back lights, com armações feitas de cambotas de madeira forradas de folhas de compensado recortadas e pintadas e, aonde haveria luz, de lâminas de plástico coloridos de 0.8 mm para suportar o vento e o calor, iluminados por luzes fluorescentes. A mesma coisa que se faz aqui no Recife com mais requinte técnico. Depois do carnaval o material era transformado em coberturas e paredes dos barracos das favelas cariocas. Tudo se transforma e se esquece. Os belos desenhos dos cenógrafos somente eram lembrados nos projetos desenhados nos estúdios e arquivados nas mapotecas dos seus autores.

Em Olinda é um pouco diferente. A Fábrica do Carnaval é também uma reserva técnica dos bonecos que serviram às decorações do carnaval ou do Natal – lembrem-se no Natal passado o belíssimo presépio instalado na colina do Carmo, que parece ser o maior que já se fez no Brasil. Todas as peças são feitas à mão, com papel marche estruturado e decorado com belas pinturas, algo feito para durar pelo menos alguns anos, para ser remontado e restaurado depois, algo feito com referências a nossa cultura e nossa história, como, de resto, é o que acontece no Recife dentro da mesma competência autoral. Tudo é reciclável, não apenas transformável tudo muda de ciclo, de direção, tudo retorna ao seu princípio, sua economia cultural. E no próximo evento público lá estão, renovados e transformados para encantar nosso olhar.

Na decoração de Olinda deste ano os bonecos na Avenida Sigismundo Gonçalves estão montados sobre uma base revestida de CDs inutilizados, catados no lixo. O efeito dos CDs sob o Sol é fantástico, eles reluzem em cores como pequenos arco Iris multiplicados aos milhares. Algo genial por sua simplicidade e estratégia.

O carnaval de Fernando Augusto é efêmero, por durar tão pouco, mas é também perene, porque materialmente ele se preserva como obras de arte econômica e socialmente olindenses.
* Arista plástico. Autor de "Memórias do olhar", Ed. Linha D'Água, 2009.

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