17 fevereiro 2010

Em defesa do Programa Nacional de Direitos Humanos

Memória e história: passado e presente
Abdias Vilar de Carvalho(1)

No fim de 2009, os jornais apontam para uma possível crise institucional e governamental causada pelas divergências entre, de um lado, o Ministério da Defesa e os Comandos militares, e, de outro lado, a Secretaria de Defesa dos Direitos Humanos, em torno da terceira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos. O ponto central estava no entendimento da criação e funções da Comissão da Verdade. No início deste novo ano, a imprensa repercute outros focos de discórdia com as propostas, desta vez, envolvendo CNA, ruralistas, igreja católica, mídia, apresentadas como as reações da sociedade. Mesmo se tratando de propostas, e não da anulação da Lei da Anistia, já discutidas no âmbito governamental e na sociedade, as medidas constantes devem ser discutidas pelo Poder Legislativo, dada a necessidade de serem transformadas em projetos de Lei.


Alguns fatos e argumentos por parte da imprensa, de líderes políticos, de articulistas e de opiniões de leitores de jornais e ouvintes de rádio, merecem, segundo penso, uma melhor reflexão.

Primeiro argumento, inclusive dito por um ex-punido pelo regime militar, segundo consta em jornal, de que não se deve remexer o passado e sim olhar para frente, tratar dos atuais casos de violência urbana e até mesmo de respeito à preservação ambiental para evitar catástrofes como as de Angra dos Reis, em dezembro passado. Como se vê, há uma mistura de fatos com naturezas totalmente distintas. A ditadura militar instaurou um regime de exceção, desrespeitando as leis constitucionais e criando nova legislação, perseguiu, prendeu, torturou, matou presos ou pessoas consideradas “subversivas”, cassou mandatos eletivos e direitos civis, trabalhistas e profissionais, fechou o Congresso, interveio no poder judiciário. E mais, criou um clima de medo e de insegurança em toda a sociedade, com repercussões psicológicas, emocionais e físicas. A música Apesar de Você, de Chico Buarque, retrata bem este período: “A minha gente hoje anda falando de lado e olhando pro chão...”. A ditadura militar fez tais atos, mesmo havendo atritos e divergências no dito “sistema militar” da época, como ato de força de um poder armado. Foram atos de ESTADO e de GOVERNO que não deviam satisfação à sociedade. Relembremo-nos da célebre frase do Ministro da (in) Justiça, Armando Falcão, quando solicitado a entrevistas: “nada a comentar”.

Segundo argumento, em lugar de uma discussão séria, alguns civis e políticos vem apostando mais numa crise institucional, e tão grave quanto, resvalando o debate sobre a história passada para o campo da disputa eleitoral presidencial. A quem interessa uma crise institucional e governamental? O “apagamento” do passado significará o fortalecimento do poder militar e qualquer que seja o futuro presidente da República, ficará ele desde já atado. Dilma, Marina, Serra com passados políticos comprometidos com a democracia não podem e não devem tergiversar.

Terceiro argumento, não se pode comparar o Brasil com a Argentina e Chile, que estão fazendo sua Verdade histórica, pois lá o número de mortos pelo regime militar foi muito maior. Que estranha e macabra contabilidade!

“Apagar” o passado tem sido uma constante por parte dos que cometeram arbitrariedades, sobretudo, no aviltamento dos direitos políticos. Conhecer bem o passado faz parte da construção e preservação da identidade política de um povo e de uma nação. Não se pode olhar o futuro, sem conhecer o passado. Sem isso, o arbítrio torna-se fato isolado e de responsabilidade individual. Em lugar de uma cidadania, há e haverá comportamentos políticos apáticos, amorfos, fortalecimento de uma personalidade “apolítica”. Mas, se apaga o passado? Rastros sempre permanecerão.

Examinar cuidadosamente as diversas propostas, aprofundar o debate é dever de todos nós.

Felizmente, a OAB, alguns jornalistas influentes, políticos e religiosos(2) têm seguindo outro caminho de defender a história pelo seu conhecimento e reconhecimento. Quanta falta nos fazem Dom Evaristo Arns, Dom Helder, Ulisses Guimarães e tantos outros que na dignidade do cargo e da função não silenciaram suas vozes.

Senadores e deputados devem sair do campo eleitoral para tratar da História do país, de uma época que ainda está turvada. Pais, familiares e amigos não sabem e não encontraram os corpos de seus entes queridos brutalmente assassinados. Perseguidos e torturados ainda penam física e psicologicamente. Estes já foram e estão sendo punidos.
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(1) Sociólogo e Pesquisador Social.
(2) O atual Arcebispo de Olinda e Recife, mesmo condenando o aborto e a eliminação de símbolos religiosos, se pronunciou favorável pelo conhecimento da verdade: “A igreja é misericordiosa, mas não nega o mal. Acho justo que quem fez o mal responda por isso”. Recife, Jornal do Commercio, 13/01/2010 pág.4.

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