22 março 2010

Sobre o livro “Um rio de gente” (1)

No Interpoética:
Histórias tecidas na água
por Cida Pedrosa

O Capibaribe está presente em minha vida desde o dia em que pisei no solo do Recife. Todos os locais em que trabalhei ou estudei me levavam a passar por suas margens, ou melhor, por suas pontes. Nos meus livros de poesia, invariavelmente, tem um poema em que ele é ator principal, ou no mínimo cenário; também faz tempo tento terminar um livro de poemas que se chama “Visitação ao Capibaribe”. Não estranhem eu ter iniciado este texto na primeira pessoa e falando de coisas minhas, apenas quis situar o quanto acho importante para mim e para todos o projeto Histórias, causos e lendas do Capibaribe, que agora se materializa no livro Um Rio de Gente. Importante, pois ele dá voz aos homens, justo a espécie que costumamos citar como vilã da degradação desse mesmo rio. Esta opção em dar palco às mulheres e homens ribeirinhos, que confundem suas vidas com a vida do Rio, mesmo quando não falam dele, traz à tona um outro olhar, não o olhar técnico que estamos habituados a ler nos tratados, quase sempre maçantes, mas um olhar antes de tudo amoroso e telúrico. A fala dessas pessoas faz com que o Rio deixe de ser um ponto em uma carta de cartografia para ser um sujeito com identidade e roupagem próprias.

Na verdade quem for ler este livro pensando que vai encontrar única e exclusivamente longas narrativas sobre o Rio vai tomar um susto. Os autores. Sim. Os autores. Este é um livro de muitos autores puxam conversas que duram horas a fio, dessas que o tempo para e a gente esquece que tá sentado num banco duro de alpendre esperando a nuvem passar. As histórias são tão gostosas e livres como conversa boa de comadre. Tem de tudo. Tem o Rio, mas também o roçado, o amor, a arte, os bichos, as assombrações, o progresso, a mudança do tempo, a saudade e a vontade de conhecer o mar.

O escritor Ignácio França percorreu um caminho seguro e de respeito à fala dos narradores. Optou pelas longas transcrições dos depoimentos, costurando-os com pequenas inferências suas, apenas para criar um fio condutor da narrativa. Cumpriu não só o objetivo do projeto que é o de resgatar a memória oral de pessoas que margeiam o Capibaribe, como valorizou o que havia de melhor nesse trabalho, ou seja, os trejeitos, os sabores, a linguagem característica das gentes dos locais visitados, as nuances de sentimentos de cada personagem e nos serviu, de quebra, momentos de poesia e encantamento.
Foto: Tuca Siqueira
Conforme o curso d’água vai descendo, ou sumindo, as histórias vão sendo tecidas. Para seu Inácio o Rio é um filete que de vez em quando vira um pano d’água só, assim como sua vida de autos e baixos, pai ausente e muito trabalho na infância. Na voz de Josefa ele pode ser dilúvio, um pé d’água, berço da sua grande paixão por Raimundo: Eu passei uma vez, nós ficamos proseando, aí eu botei um amor a ela danado. Cicinato, homem sabido, viveu entre o sítio e a cidade, divide seu depoimento com Maria José, seu grande amor: ...nunca me esqueci de gostar dele... Bartolo fala de cheias, de peixes, de festas populares e arremata: O peixe nasce dentro d’água, o peixe conhece o rio. Eu nasci aqui, aí eu conheço tudo isso aí, né... José Gomes recorda um tempo em que o algodão era a base da economia local e em que veados, onças e assombrações eram uma realidade cotidiana e os bichos anunciavam as estações: ...Os passarinhos da natureza adivinham tudo. A gente não adivinha nada... Zé Ferrão conta tanto causo que não dá para saber em que local do açude de Poço Fundo ele aguou sua imaginação: ...ô fulano, repara a neve! Mas não era neve, não: era o cabelo dos gato voando... O escultor Nelson faz uma viagem para dentro de si e para as margens do Capibaribe, local em que recolhe o material para sua arte: Quando passava uma cheia, aí então aquelas árvores rolavam. ... e aquelas que estavam mortas eu serrava, trazia pra casa. Mestre Toinho conta da sua iniciação e das suas andanças por diversos maracatus e termina cantando loa: Oi, que sonho tão bonito,/ Não me deixaram sonhar, /Lanceiro pegar suas lança /Vamos pra rua lutar; Dona Miriam Pereira viveu em um Recife onde hortaliças eram plantadas na beira do Capibaribe e vivenciou a cheia de 1966, que fez ruir esse mundo e desabrigou sua família: ...Veio aquela cheia e acabou com tudo, né? Fiquei debaixo de um pé de árvore, com duas crianças. E por caminhos de águas eles vão falando e tecendo suas vidas no tear das palavras.

Termino esse texto e fico a matutar. São tantos fios, tantas curvas, tantos poetas, tantas e tantas histórias entrelaçadas pela mesma água, pela mesma sinergia que costumamos chamar de Rio Capibaribe, que não sei se ele é um Rio ou um curso de magia.

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