29 setembro 2010

Meu artigo semanal no Blog de Jamildo

Ontem e hoje: a chama
Luciano Siqueira

"Aplica-se injeção nas horas vagas" - horas vagas de quem? Do eventual paciente ou do improvisado enfermeiro? A proposta do companheiro José Luís Guedes só poderia ser recebida às gargalhadas, como foi, por todos os que nos reuníamos clandestinamente numa manhã de sol claro, no verão de 1969 (ou 1970?), em Paripueira, litoral norte de Alagoas, em plena ditadura militar. Em debate, formas de "legalizarmos" nossas residências de fugitivos da polícia política.

"Legalizar" era a expressão que usávamos para dar aparência de normalidade. Precisávamos "fazer parte da paisagem", não despertar estranheza nem desconfiança na vizinhança, nada que pudesse colocar nossa segurança em risco.

Éramos em geral ex-líderes estudantis em nossas cidades de origem, agora convertidos em profissionais de diversos ofícios como meio de escaparmos à repressão. E de sobrevivermos: da atividade produtiva tirávamos o dinheiro da feira semanal e ainda contribuíamos para sustentação do Partido.

Uns eram vendedores ambulantes - como o autor dessas linhas, então ex-estudante de medicina no Recife, e a companheira, Luci, que militara no Colégio Estadual de Pernambuco; outros, camponeses, trabalhando na roça, ou operários de fábrica, técnicos de conserto de rádio e TV, auxiliares de enfermagem. Tinha de tudo. O Guedes chegou a trabalhar como caixeiro viajante de uma indústria cerâmica do interior do Ceará.

As "horas vagas" motivo de risos tinham, entretanto, um sentido. Pois apesar da absoluta restrição da liberdade e da ferrenha perseguição, desenvolvíamos intensa atividade. Viajávamos de um ponto a outro da região, realizando reuniões escondidas, articulando militantes espalhados por vários estados do Nordeste. E estudávamos. Líamos muito. Foi o tempo de nos iniciarmos em O Capital, de Marx, nas Obras Escolhidas de Lênin e em A Questão Agrária, de Kautsky; de tentar compreender a realidade brasileira através de clássicos como A Terra e o Homem no Nordeste, de Manoel Correia de Andrade e Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. Depois vieram prisões, mortes de alguns, sobrevivência de outros, até os dias que correm, de conquistas várias e da abertura de um novo ciclo na História do Brasil, com a assunção de Lula à Presidência da República.

Olhando pra trás, vemos que naquele tempo não dispúnhamos de um Programa claro, apenas um sonho socialista impreciso e um objetivo imediato - a derrocada da ditadura militar. O suficiente para alimentar a chama que ardia em nossos corações e nos impelia a lutar, por mais arriscado que fosse.

Passados tantos anos, estimula-nos o sentimento de que tudo valeu a pena, de que fomos partícipes da reconquista da democracia (ainda que tênue e instável). E a consciência de que hoje nós do PCdoB dispomos de um Programa Socialista factível porque fundado na teoria marxista e nas peculiaridades da sociedade brasileira; e uma orientação tática consistente, comprovada pela vida. Alimentos de uma chama que arde mais forte e envolvente em nossos corações militantes.

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