22 janeiro 2012

Gente pernambucana

As sandálias
por Inácio França, na Interpoética http://www.interpoetica.com/

Valdenice era a secretária de Educação de Orobó e filha do prefeito Manoel João. Dito assim, até parece se tratar de mais um caso típico de nepotismo, o pai arrumando um emprego fácil para a filha querida. Só parece: Valdenice, que todos na cidade chamam de Valdinha, é daquelas que não conseguem se desligar do trabalho um só instante, uma workaholic do agreste.

Na época em que empregar filhos e outros parentes nas prefeituras se tornou proibido por lei, até o juiz da comarca se movimentou para garantir Valdinha na secretaria, mas com o auxílio inestimável de Mr. Google, descubro que ela deixou o cargo em 2009. Só não sei por quê.

Sei de tudo isso por causa do meu trabalho, na época em que tentava fazer a comunicação do Unicef em Pernambuco, mas acabei mesmo foi aprendendo um pouco sobre avaliação de políticas públicas. E em cidades como Orobó havia muito o que aprender e avaliar.

Orobó acabou sendo premiada pelo Unicef. Havia razões objetivas e indicadores para isso, números frios que comprovavam o esforço, mas não contavam a história toda.

Valdinha não fazia as coisas que lhe davam na telha. Na equipe da Educação – coordenadores, diretores de escola ou de departamento – não faltavam profissionais com mestrado e até doutorado. Essa equipe discutia tudo, participava das decisões, inclusive a que foi tomada para reduzir o abandono e a evasão escolar, ainda enorme apesar dos muitos anos de programas de erradicação do trabalho infantil. Numa revista online sobre escolas públicas, encontrei esse dado: em 2004, um ano antes de Manoel João ser eleito prefeito, 1.170 adolescentes abandonaram as salas de aula. Muita gente para uma cidade tão pequena.

O pessoal da secretaria fez uma pesquisa, indo de escola em escola, encontraram uma explicação ao mesmo tempo óbvia e surpreendente: muitos meninos e meninas não tinham calçado de espécie alguma, sapato, sandália, alpercata, nem tamanco, nada. Se recusavam a ir à escola porque sentiam vergonha de ir às aulas com os pés no chão.

O que Valdinha fez? Arrumou um dinheiro da Educação e foi até a uma fábrica de sandálias de dedo, as boas japonesas, e comprou mais de 1.000 pares para distribuir para a moçada. Deu certo. Em 2006, 688 alunos largaram os estudos. Caiu quase pela metade.

No ano seguinte ao prêmio, uma equipe do Diário de Pernambuco percorreu algumas cidades reconhecidas pelo Unicef para descobrir o que havia de bom em cada uma delas. De Orobó, o editor Sérgio Miguel Buarque, amigo e quase-irmão há 30 anos, e a fotógrafa Inês Campelo trouxeram essa história e a foto que ilustra esse texto.

As coisas melhoraram, mas outro problema surgiu. As crianças que chegavam na escola com sandálias japonesas viraram alvo de chacota dos colegas. Diziam que eram as sandálias “da prefeitura”. Crianças são assim: inocentes sim, cruéis também.

Uma nova providência foi tomada para evitar que os mais pobres fossem estigmatizados. A nova medida foi, essa sim, ainda mais ousada. A secretaria de Educação decidiu que a sandália japonesa era item obrigatório do uniforme escolar. A partir daí, só entrava em sala de aula com sandálias de dedo. Alunos com tênis caros, coloridos e modernos, tinham que voltar para casa. De um momento para outro, todos se tornaram iguais. Uma medida simples e extremamente inclusiva.

Até hoje lembro das circunstâncias em que escutei esse relato, numa tarde abafada em Orobó.

Da última vez que conversei com a então secretária Valdinha, ela me disse que estava preparando uma compra de colchões para reduzir ainda mais a repetência e a evasão, melhorando o desempenho dos estudantes que dormiam – mal – no chão úmido da zona rural e, insones, enfrentavam horas de matemática, português, geografia e história.

O problema era comprar colchões sem que os obtusos burocratas do Ministério e, principalmente, do Tribunal de Contas ficassem pensando besteira.

Não tenho a menor ideia se os colchões foram comprados e distribuídos, mas em 2009, 471 crianças e adolescentes abandonaram a escola, praticamente 1/3 do número que abandonavam as aulas antes da compra do primeiro chinelo.

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