24 junho 2013

A vida do jeito que é

Recife continua invicta
Marco Albertim, no Vermelho www.vermelho.org.br

Cena 1 - O seio está quase à mostra

Depois de escrever a reivindicação que mais convém à musicalidade de seus ouvidos, a moça empunha a cartolina com os dois braços. Um vento sopra na marquise da esquina da rua Gonçalves Maia; sopra para desalinhar os curtos e finos cabelos em sua cabeça roliça. No balanço de seu corpo, o decote do vestido desabre-se sem controle.


O seio esquerdo fica quase à mostra; túrgido, tropical, com o bico tão redondo quanto uma moeda. Parece a revolucionária da Comuna de Paris; numa mão, a bandeira vermelha; noutra, o fuzil. Convém não citar seu nome, convém dizer que é tão moça quanto o viço da União dos Estudantes de Pernambuco. Dois de seus confrades têm na mão um saco plástico com tubos de tinta em spray.

- Livrem-se disso. A UEP não concorda em sujar as paredes com tintas no spray.

A censura da militante é tão enérgica que toda a sua roupa se recompõe, como para dar conta da moral do bulício promissor da tarde. Os dois moços entreolham-se, não se livram dos tubos de tinta. Recolhem-se a um canto da marquise, sentam-se na frieza dos canos de ferro que separam as bombas de gasolina da loja de conveniência.

As cartolinas colorem-se com o calor de demandas escritas. Uma vintena de estudantes, com bochechas e narizes pintados de verde, de amarelo, espera o sinal para seguir a multidão, ainda rala à altura das duas da tarde. No estacionamento do posto, outros cinco moços apeiam-se do Fiat cinzento. Têm uma sacola com tintas; pintam-se sem esconder o gestual feminino. A vaidade gay mistura-se aos cartazes com censuras ao deputado Marcos Feliciano.

A duzentos metros dali, na rua Gonçalves Maia. Uma patrulha de vinte PMs protege a frente do consulado americano. Três viaturas de cor negra compõem o cenário. Gays e militantes da UEP não lhes dão atenção. A patrulha se mantém absorta, prosaica.

Cena 2 - A prenhez da estudante

Às quinze horas a avenida Conde da Boa Vista esvazia-se de carros, de ônibus. Moços com cartazes, apitos, percorrem-na como para sorver a ausência do risco de serem atropelados. As lojas, com exceção da loja do posto, point de moços notívagos, estão com as portas cerradas, muitas com tapumes. No Derby, a praça está ocupada por milhares de moços. O trânsito na avenida Agamenon Magalhães é interrompido; dos raros carros, os ocupantes acenam para a multidão. Ouvem-se, aqui e ali, os estampidos de rojões. Um motorista desce do ônibus sem a pressão da multidão; não há susto em seu rosto. A Associação de Praças e Bombeiros monta uma barraca, arrecada donativos para as vítimas da seca. No meio da ponte, sentados no asfalto, rapazes com cabelos à moda rastafári, fazem circular de boca em boca a grossa bituca de liamba; o odor mistura-se à inhaca que sobe da lama do canal. Uma patrulha de quinze PMs está na esquina da avenida Carlos de Lima Cavalcanti; sobre a farda, num dos antebraços, portam uma fita branca com uma legenda: PAZ. .Cinco marginais tentam tomar o celular de uma mulher. Ela grita, chora com desespero no rosto lívido. Manifestantes, um grupo deles, conseguem agarrar dois dos ladrões e os entregam à polícia.

Indiferente ao tumulto, a prenhez de seis meses, exposta, da estudante, exibe em letras vermelhas - Quero uma nova vida. O rosto e as pernas estão intumescidos, encorpam a multidão que protesta feliz.

Cem mil pessoas arrastam-se lentamente rumo ao centro do Recife; a avenida lhes pertence. As patrulhas da Polícia Militar olham-nos prosaicas, sem indícios de que a força militar é maior que a multidão na ruas. Uma dezena de militantes do PSTU aproxima-se do primeiro cruzamento da avenida. Manifestantes apupam-nos. A polícia põe-se no meio, separa-os sem empurrões. Ouve-se na pouca altura o ruído do helicóptero da Globo. Vaias. Mais alto, o helicóptero da Polícia Militar monitora o rumo da marcha.

Às 19 horas, também a avenida Guararapes é ocupada. Na Praça da Independência, a polícia prende ladrões que fazem arrastão; ouve o aplauso da multidão. Na margem do rio Capibaribe, em frente à Assembleia Legislativa, a calçada formiga de PMs. Uma rala multidão zumbe na rua da Aurora. Dali em diante, por toda a noite, vazando a madrugada, todo o gradil de ferro do Palácio da Justiça enxameia-se com faixas e cartolinas; dir-se-ia uma noite de novena sem o sussurro de rezas.

Recife dorme convencida de que permanece invicta.

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