04 junho 2013

Caso de vida e de morte

A saga de um quase morto
Ronaldo Correia de Brito

Só tive a medida do sofrimento de Claudiney Silva, paciente de um hospital público onde trabalho, no dia em que vi seu retrato abraçado à filha de dois anos. Olhando sorridente para a câmara, ele nem parecia o enfermo que me habituei a ver, queixoso e transtornado. Outras imagens dispostas em seqüência num álbum, iguais a uma revista em quadrinhos, me ajudaram a recompor pedaços da vida de Claudiney, um doente que dava a impressão de não ter história. Acusam os médicos de possuírem o olhar insensível, horizontal como o dos atores que contemplam o nada. Às vezes, evitamos enxergar o sofrimento que nos cerca por sobrevivência.

Claudiney Silva tem vinte e três anos. Quando levou o tiro que o deixou sem sensibilidade da cintura para baixo e sem poder andar, acabara de completar vinte e um. Vendia ovos na periferia da cidade. Dois rapazes o abordaram quando descia de um ônibus. Ele tentou esconder o ganho de cento e noventa reais e um dos assaltantes alvejou sua coluna vertebral. Bandidos nunca erram o alvo.

Claudiney, que não tinha planos pro futuro além da sobrevivência, começou sua via crucis no instante em que foi baleado. Tentou levantar-se, mas as pernas não obedeceram. Socorrido na emergência de um hospital público, ficou internado por muito tempo. Teve alta com as primeiras escaras na região sacral, que iriam se infectar e acometer outras áreas do corpo.

Na foto em que aparece bebendo cerveja ao lado de quatro amigos, Claudiney veste bermuda, camiseta, e exibe um corpo naturalmente musculoso. É possível que Marlene, a mulher catorze anos mais velha que o recebera em casa como companheiro, o achasse bonito. Se beleza é uma aura de vitalidade, no retrato é fácil encontrá-la. No rosto atual de Claudiney não vemos nenhum sinal do que chamamos belo. A menos que idealizemos a palidez, a magreza extrema e os cabelos finos e quebradiços, como faziam os poetas românticos.

Ao sair do hospital na sua primeira alta, Claudiney voltou para a avó que o adotara desde o nascimento. Marlene, a mulher com quem tivera uma filha, já o havia expulsado de casa quando ficou sabendo que o companheiro contraíra uma doença venérea. Não perdoou a traição com uma prima de dezessete anos, na vida de prostituta desde os treze. Marlene não é bonita e aparece de shorts e blusa com a barriga de fora, num retrato em frente a uma Kombi de lotação.

Marlene levava as refeições do ex-companheiro na casa da avó, embora não tivesse mais nada com ele. Claudiney não recusava, pois na situação difícil não dava para bancar o orgulhoso. Sem remorso, compreendeu que a ex-mulher não merecia o que fizera com ela. Para redimir-se, contou a Marlene que batera na prima quando soube que ela o contaminara com a gonorréia. Soube mais tarde que a garota andava de caso com um motorista.

Como não tinha emprego fixo, nem recolhia INSS, Claudiney ficou a ver navios num porto inseguro. Só tinha a avó para socorrê-lo, igualzinho a quando nasceu. Marlene rareou as visitas, apagou as lembranças do que faziam juntos em noites quentes e desapareceu. Os amigos da cerveja tomaram chá de sumiço. Só as escaras aumentaram, a infecção ganhou corpo e precisou de novo internamento. Vive há três meses sob os cuidados do Estado, o mesmo que não lhe garantiu segurança.

Claudiney, como todos os que nascem, irá morrer. Mas sofrerá horrores até chegar sua hora. A infecção destrói os tecidos, o sangue, a carne, apesar dos cuidados da equipe médica. Os investimentos para debelar a infecção e melhorar a nutrição de Claudiney são altíssimos. Antibióticos, albumina e curativos especiais custam caro, dinheiro que poderia ser usado na prevenção de doenças endêmicas, saneamento básico e educação.

Internado há três meses, Claudiney espera alcançar condições clínicas para submeter-se à desarticulação dos membros inferiores, uma forma radical de amputação. Antes, precisará fazer outras cirurgias. Os procedimentos lhe darão chances de viver um pouco mais e melhor. Agarra-se à vida com unhas e dentes. Igualzinho a ele existem muitos espalhados pelo Brasil. São as vítimas da violência.

O Estado que gasta fortunas para cuidar desses quase mortos, falha em cuidar dos vivos. Não seria mais barato prevenir a violência? O Estado talvez possua o olhar horizontal, não enxerga misérias e dramas como os de Claudiney. Deixa por nossa conta o sofrimento de tratar as feridas que ele não previne. 
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Um comentário:

WRK disse...

Meu querido ... num País que pulou tantos degraus para o desenvolvimento, tá muito longe desta melhoria física e social. Não se constroem mais hospitais se os que existem, estão ruim das pernas. Não se constroem mais escolas se as públicas, estão desoladas. Não acaba com a violência se ainda permite a fabricação de armas para civis utilizarem. O que falta realmente ao ser humano é o olhar verdadeiro ... olho no olho....verdade com a verdade.... aperto de mão forte e sincero... Sonho de construir. Vontade de fazer. Certeza de realizar. Beijos