08 dezembro 2013

A vida do jeito que é

As tumbas se falam
Marco Albertim, no Vermelho

 
Não há desolação nos cemitérios. As moléculas ali se amontoam de tal modo, que fingem não gemer. Se há vento, têm a cumplicidade do sopro que ameniza-lhes a agonia infinda. Entre um túmulo e outro, o diálogo se dá na arquitetura concebida. Ou as tumbas lá não têm seu caráter de classe? Assim, a família de Lourenço Gadelha figurou uma tumba de mármore polido, reluzente, com metro e meio de altura e três de comprimento.

A cruz, do mesmo calcário, numa prateleira um palmo acima do estrado tumular, tal como no altar da igreja matriz, onde o então prefeito nunca pusera os joelhos; não sem correr o risco de ser pilhado em postura desastrosa, posto q ue fazia inveja aos galos de seu galinheiro, tamanha a ruma de mulheres que lhe davam acolhida no leito propício a maquinações do sexo.

Já a família de Eusébio Martins dos Santos, morando em casa numa rua sem pompas de classe recém-emergente da pobreza, optou por uma tumba no meio de outras sem requintes de luxo mortuário. De alvenaria comum, os anos passam e a casca da pintura no outeiro oval do túmulo, esvoaça sem sair do lugar, porque o vento apenas sopra para lembrar que a dor da decomposição é lenta, inda que permanente. Eusébio Martins dos Santos, de cintura e ancas tão bojudas quanto a largura de sua tumba, fora prefeito. Ao contrário de Lourenço Gadelha, aquietou-se com uma única mulher, com quem se casou, emprenhando-a oito vezes.

Gadelha, no segundo mandato, deu outra feição à frente de sua casa, com traços de modernidade, pondo fim ao diálogo de quietude entre a igreja matriz e o casario barroco entre um lado e outro da rua principal de Goiana. A reforma da casa, expressão tão comum a novos-ricos, contagiou o juízo incauto da vizinhança. A rua Direita, hoje, é um ajuntamento de três quarteirões cujas casas exibem cerâmicas próprias às paredes de cozinhas, de banheiros. Goiana tem quase quinhentos anos. A memória da cidade não foi preservada.

De volta ao cemitério, o vento ajuda a recompor as diatribes entre Eusébio Martins dos Santos e Lourenço Gadelha. A memória não restitui com rigor os episódios. O acréscimo de detalhes dá força ao lembramento. É a responsabilidade da arte. Assim, numa manhã morna de domingo, no mesmo túmulo de Gadelha foi enterrado um seu neto, cujo nome tem pouca monta na família. Lamartine Gadelha pouco ou nada fez em vida. Herdou, junto com os irmãos, uma das muitas casas que o avô comprara quando prefeito e dono de banca de bicho. O velho emprenhou muitas mulheres. Para evitar que os filhos - não os da primeira mulher, com quem se casara de papel passado - tivessem o direito à herança, registrava as casas nos nomes de cada um dos netos do casamento pri ncipal. O enterro de Lamartine Gadelha reavivou, pois, as diatribes entre os rivais de partidos diferentes.

De sob a mangueira cinquentenária, onde desbotam as paredes da tumba de Eusébio Martins dos Santos, ouve-se sua voz ainda metálica, cuja sonoridade dispensava o uso de microfones.

- Tem a ousadia de enfeitar o peito com o paletó de linho, mesmo que todos saibam que tem no bolso da calça o remédio que lhe acode nas horas do coito ilegítimo!

Lourenço Gadelha desperta de seu suposto sono. O paletó cinza-claro, no contraste com o rosto trigueiro, auxilia no entendimento da voz rouca, quase sumida com o uso contumaz do cigarro.

- Quem se imiscui nas entranhas de cada família, foge do debate sobre as necessidades do povo, e dá o direito de ser acusado de tirar vantagem pessoal do cargo, porque tirou o portão de ferro do muro da prefeitura, para enfeitar sua casa na praia de Ponta de Coqueiro.

Mas Eusébio Martins dos Santos, cujo paletó escuro, de tropical áspero, contribui para o suor abundante no rosto papudo, não se abate na flacidez da barriga. Os cabelos ralos, penteados para trás sem ondas nem curvas, convencem-no da retidão dos atos.

- Não estou só nesta caminhada. Desde a juventude que eu soube absorver os ensinamentos da Maçonaria secular, sobre quem pesam o respeito e a confiança do povo; porque só tem assento em sua mesa, quem de sua vida faz um maná de honestidade.

O coveiro põe a última porção do cimento da mesma cor do mármore, entre a tampa e a mesa do túmulo. O cortejo fúnebre se dispersa. O cemitério retoma o vazio, a bem da disciplina inconfessa entre os mortos.

Os dois rivais, sem ter quem os ouça na disputa de uma eleição incerta, calam-se.

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