19 outubro 2014

Desnudando a tergiversação

A retórica tucana e o mito da evolução natural
O abuso da retórica da cientificidade como recurso de poder é comum entre neoliberais que travestem a opção política como julgamento neutro.
Pedro Paulo Zahluth Bastos e Marcio Pochmann (*), na Carta Maior
O abuso da retórica da cientificidade como recurso de poder é comum entre neoliberais que travestem a opção política como julgamento neutro. O nível de autoengano, para dizer o mínimo, chegou a extremos em artigo recente de Samuel Pessôa (Folha, 12/10). O físico-economista alude à genética de Bruna Marquezine para defender que progressos no bem estar social dos brasileiros devem-se ou à “evolução natural” da sociedade ou a reformas de FHC que, no fundo, teriam semeado os avanços colhidos por Lula e Dilma. Pessôa alega que a retórica petista “descontextualiza” FHC e distorce informações para favorecer Lula e Dilma.

Na verdade, é Pessôa quem omite informações, recorre a truques de retórica e distorce a realidade visando ao melhor efeito político para o PSDB. A principal omissão é que FHC executou a plataforma neoliberal de ampliar o papel do mercado e da competição para selecionar os melhores e punir preguiçosos, prometendo crescimento: privatização de estatais, desregulamentação do mercado de trabalho e liberalização comercial e financeira.

A promessa era falsa: a renda domiciliar per capita caiu entre 1995 e 2002, segundo dados do IBGE (Pnad), tendo aumentando mais de 50% a partir de 2003, com a recuperação do papel do Estado com Lula e Dilma. A melhoria de outros indicadores tampouco resultou da “evolução natural”, a saber:

1. Desigualdade (Gini): enquanto se manteve estável com FHC, caiu 10% com Lula e Dilma diante da valorização do salário mínimo, da defesa e formalização do emprego e ampliação do gasto social, que explicam a queda muito mais do que o avanço “natural” da educação e da demografia;

2. A propósito de progresso educacional, em 2001 FHC vetou o 1º Plano Nacional de Educação (PNE), que determinava investimentos de 7% do PIB até 2010, deixou o país sem meta de financiamento e concluiu mandato com 3,5% do PIB; em 2014, Dilma aplica 6,4% do PIB em educação e sanciona o 2º PNE com destino de 10% do PIB até 2024.

3. Sobre demografia, Pessôa alude a um conceito vago para explicar seu impacto na queda do desemprego: a “transição demográfica”. Talvez se refira à queda da natalidade e o envelhecimento da população, mas a verdade é que isso ainda não esgotou o bônus demográfico (maior proporção de pessoas em idade ativa), pois os adultos nascidos na vigência de taxas mais altas de crescimento populacional ainda não se aposentaram. Ao contrário de reduzir o desemprego, isso o aumentaria caso a oferta de empregos não tivesse aumentado e, principalmente, se não houvesse intensa inserção de jovens à escola, atrasando sua entrada no mercado de trabalho!

De fato, Pessôa omite a significativa ampliação das transferências de renda condicionadas à matrícula escolar, além de bolsas e crédito subsidiado para ensino técnico e universitário e a criação de 18 novas universidades federais (contra zero com FHC) e 178 novos campi. Com isso, as matrículas no ensino superior elevaram-se de 2 milhões (2002) para 7,5 milhões (2014), complementados por 8 milhões de alunos no Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec): produto da evolução natural?

4. Pessôa alega que mais da metade do crescimento da dívida pública com FHC resultou da assunção de dívidas passadas não contabilizadas. Isso é pura invenção: a “assunção de dívidas” explica menos de 10% da dívida e foi compensada em dobro (!) pela venda de estatais e a elevação de impostos.

O que explode a dívida são juros altos e títulos indexados em dólar para evitar a crise da âncora cambial antes da reeleição de FHC em 1998. No próprio estudo do IPEA citado por Pessôa, correção cambial e juros altos contribuem com mais do que 100% da multiplicação da dívida por cinco entre 1995 e 2002! A dívida só não se elevou mais por causa das privatizações e do superávit primário depois de 1998.

5. Três idas ao FMI: Pessôa cita artigo de M. Bolle que, à maneira de Goebbels, não chama as coisas pelo nome e alega que empréstimos do FMI não indicam que o Brasil “quebrou”, pois “facilitaram a empreitada” da inclusão social. Por que “quebrar” designaria o fato de não obter financiamento do FMI e decretar moratória, ao invés de precisar dele a ponto de, no desespero, realizar políticas que levaram o desemprego a 15% e prometer vender o Banco do Brasil, a Caixa e as demais empresas estatais ainda não privatizadas, inclusive a PetrobraX?

6. Sobre o desemprego, Pessôa incorre naquilo de que acusa o PT: o “truque retórico de escolher estatísticas e bases de comparação de forma oportunista”. Em 2011, ele escreveu que, “entre julho de 2003 e julho de 2011, a taxa de desemprego caiu mais de 50% (!), apresentando redução de 13% da população economicamente ativa para 6,2%”, citando dados de regiões metropolitanas captadas pela Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE. No domingo, usou a PNAD para afirmar que “se tomarmos como base de comparação 2002, último ano de FHC, o desemprego caiu 2,6 pontos percentuais (!), de 9,1% para 6,5%”, sem sequer discutir que a PNAD capta menos a “transição demográfica” que cita. Ora, 50% ou 2,6%? É provável que a diferença no modo de calcular a redução do desemprego em 2011 e em 2014 se deva a oportunismo político e truque de retórica, não?

A piada sem graça não é que a retórica petista se aproprie da “evolução natural” de Bruna Marquezine, mas que seus críticos precisem se iludir quanto à rejeição da “herança natural” do neoliberalismo tucano por Lula e Dilma.
(*) Professores do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas. 

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