11 janeiro 2016

Jovem transgressora aos 87 anos

As três vidas de Tereza

Homenageada com o “Prêmio Orgulho de Pernambuco”, pintora diz que sempre foi uma transgressora e que pagou muito caro para ser livre
Isabelle Barros, no Diário de Pernambuco
Tereza Costa Rêgo abre as portas de sua casa, no coração do Sítio Histórico de Olinda, e mostra sua coleção de vassouras. “Sou uma feiticeira”, diz. A jovialidade quase sobrenatural que apresenta aos 87 anos depõe a favor de suas palavras. Mas, quando se trata da pintura, sua paixão e ofício, é possível dizer que a arte apresentada por ela ao mundo está mais próxima da alquimia. A cor que a define - o vermelho - pode ser vista tanto nos quadros da sua casa quanto em sua reserva técnica, localizada na mesma Rua do Amparo, onde ela vive há mais de 30 anos.
Quanto mais entramos no casarão da Rua do Amparo, que ela chama de lar desde a sua volta ao Brasil, no início dos anos 1980, mais nos aproximamos do que ela chama de “útero”: o seu ateliê. Generosa, a artista franqueia a mim e à fotógrafa que me acompanha o acesso à sala, um privilégio concedido a poucos. Com tintas, quadros e uma rede recém-colocada, ela define este como o lugar onde se sente mais à vontade. “Me sinto eu mesma aqui”. Antes de chegar lá, é preciso passar pelo jardim, feito em um terreno comprido e estreito, típico da Cidade Alta. “[O paisagista] Burle Marx vinha aqui vez ou outra e me deu muitas dicas para fazer meu jardim. Já trabalhei com paisagismo e ele olhava as minhas escolhas, dizia se estava bom”.
A temporada mais recente em Olinda simboliza uma das três grandes transformações vividas pela pintora. “Vivi três vidas em uma”, lembra Tereza. A artista nasceu em 1929 e parecia destinada a reproduzir o destino de uma moça de família tradicional recifense: bem educada, bem casada e cuidada pelos cinco irmãos mais velhos. No entanto, essa não era a vida que Terezinha - seu nome de batismo - desejava para si.
A arte sempre fez parte de sua vida, mas nem sempre como fonte de seu sustento. Quando era jovem, Tereza fez Escola de Belas Artes e conheceu amigos de toda uma vida. Reynaldo Fonseca, Aloisio Magalhães, Gilvan Samico, Francisco Brennand foram alguns de seus colegas. Com o tempo, veio um casamento bem longe do ideal, embora dinheiro não faltasse. Quando conheceu o dirigente comunista Diógenes Arruda, houve o fim do primeiro ciclo de sua vida. Apaixonou-se por ele e separou-se do então marido. “Sempre fui uma transgressora nata. Paguei muito caro para ser livre”.
Com o golpe militar, Tereza precisou sair do Brasil. Viajou o mundo como Joanna, seu codinome pelo Partido Comunista, sempre ao lado de Diógenes. Pintava quadros, mas dificilmente poderia ficar com eles, dada a sua situação nômade por conta do exílio. “Dei minhas telas de presente a pessoas em vários lugares do mundo”. Entre as dores, estava a de ficar longe das duas filhas e de Pernambuco, de onde sentia saudade de coisas simples, como comer pitanga. Após passar 18 anos como Joanna, soube, com Diógenes, da Lei da Anistia. Os dois voltaram, mas ele faleceu na chegada, ainda no aeroporto, em 1979. Da dor, Joanna se tornou Tereza. “Sempre tinha sido consequência dos outros: filha, irmã, esposa. A partir daquele momento, decidi ser eu. Antes, eu era uma pintora bissexta. Mas, na minha vida atual, eu pinto, pinto, pinto e vivo das minhas mãos”.
Foi a partir dessa necessidade de reconstruir a própria vida que Tereza decidiu se fixar em Olinda, onde passou a abraçar a pintura com força - sua produção cresceu e sua reputação como pintora relevante também. Desde os anos 1980, ela produz com ímpeto telas que deram origem a exposições como Imaginário do bordel - o parto do porto (2003). Na mostra, a artista materializou em imagens as histórias de bordel ouvidas enquanto fingia que dormia no colo de seus irmãos. O trabalho que a comove nos últimos tempos é As mulheres de Tejucupapo, o maior quadro de sua vida, com 15 metros de largura, finalizado recentemente e que levou quatro anos para ficar pronto. O olhar épico, afinado com o de grandes pintores, como o de Brueghel, Portinari e Goya, traz quatro planos diferentes e revela uma maturidade artística inquestionável.
Embora tenha sido atingida por tragédias pessoais, Tereza é a imagem da resiliência. Resistir pela arte é o caminho que ela decidiu tomar desde que perdeu seu amor, Diógenes Arruda, e encontrou a si própria por meio da pintura. É com risadas e com um copo de vinho na mão que ela deseja ser lembrada. A casa da Rua do Amparo também é parte importante do “estar no mundo” da artista. Foi nela, por exemplo, que a pintora se apaixonou pelo Homem da Meia-Noite, outra figura emblemática de Olinda. “Você não sabe como o exílio é terrível, mas de todas as coisas ruins que me aconteceram, me acostumei a ver ao menos algum lado bom”. E, na hora da despedida, a artista ainda encontra tempo para uma última gentileza e me dá um galho de arruda. “Estou dando a você algo que não se dá”.
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