08 fevereiro 2016

Uma crônica sobre carnaval

Saudade da confusão boa

Luciano Siqueira, no portal Vermelho, 2003

Diz Millor Fernandes que uma das ironias da vida é quando o garoto cresce, torna-se adulto, arranja emprego e conquista um salário, já não tem vontade de comprar um saco de sessenta quilos de bombom.
De fato, na vida é assim. Cada coisa a seu tempo, direcionando vontades, expectativas, prazeres ou frustrações, via de regra condicionadas pelas circunstâncias. O gosto de brincar o carnaval, por exemplo, em distintas dimensões e intensidades, ao longo da vida.
O prazer ingênuo do garoto, posto com o irmão e vizinhos do mesmo tope, entre adultos, num caminhão ornamentado que o pai providenciara para o corso na avenida Marechal Deodoro, em Natal. Depois, já adolescente, as excitantes matinês do Aero Clube; e, na idade adulta, já no Recife, os bailes do Clube Náutico Capibaribe. Melhor ainda no final dos anos setenta, em Olinda, a farra das troças improvisadas Traquinos de Beré e Tá Rindo de quê?, precursoras do Sai na Marra – bloco do PCdoB que há 20 anos desfila pelas ladeiras da Marim dos Caetés, domingo à tarde.
Que terá levado um tímido como esse que lhes escreve agora a empunhar o estandarte do bloco, fazendo evoluções numa mesa de concreto do Bar Ecológico, na Praça da Preguiça, e de lá despencar quase fraturando o cóccix? Certamente uma boa dose de hidroxila na cuca e muita empolgação com a alegria geral.
Hoje, mais do que antes, o carnaval atrai, contagia, entusiasma. Pelo menos em Olinda e no Recife, cada vez mais uma festa multicolorida e irreverente, expressão genuína das raízes, dos valores e das emoções do nosso povo, que ocupa democraticamente um território livre de constrangimentos e a salvo da sanha dos negociantes da folia. Aqui basta botar uma bermuda e sair à rua, dá-se de cara com o frevo, o maracatu e tudo o mais que se escolha para revelar sentimentos reprimidos no cotidiano da vida. Não precisa pagar, feito em Salvador e no Rio de Janeiro para participar da “confusão boa”, no dizer da prefeita Luciana Santos.
Mas acontece que entre o desejo e a possibilidade há uma distância razoável mediada pela inviabilidade de ir às ruas na condição de simples folião. O cargo de vice-prefeito impõe obrigações que tiram toda o tesão. Fazer-se acompanhar de seguranças e de cerimonialistas, cumprir roteiro oficial, agüentar ébrios e outros nem tanto, que insistem em tratar de política em plena algazarra. Melhor retirar-se com a família para uma praia distante e se embevecer com caminhadas à beira-mar, boa música e leitura leve. E retornar na quarta-feira de cinzas com disposição redobrada para enfrentar o batente.
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