20 maio 2016

Itinerário do retrocesso

Democracia e o golpe em dois turnos
Paulo Moreira Leite, em seu blog

Num esforço para se entender com clareza a mudança institucional em curso com o afastamento temporário de Dilma Rousseff e a posse de Michel Temer, até a palavra final do Senado, cabe reconhecer que o país atravessa um golpe de Estado em 2 turnos.
Após os 55 a 22 da primeira votação, cabe perguntar se será possível reverter o quadro na segunda rodada. A maioria dos parlamentares, assessores e ministros ligados ao governo Dilma costuma dizer que sim. Mesmo admitindo uma imensa dificuldade até lá, enxergam a possibilidade de uma virada em função de dois fatores.
O primeiro, é que desta vez serão necessários obter  cinco votos a mais. Mesmo considerando que se trata de um esforço imenso, numa disputa voto a voto, com cartas marcadas, pressão de todo tipo, e
uma desvantagem importante – a máquina do governo irá trabalhar pelo outro lado – seria absurdo considerar, na política e na matemática, que se trata de um objetivo derrotado com antecedência. Como me disse um deputado: "Se a questão é oferecer cargos, a situação se inverteu. Desta vez temos um ministério inteiro para negociar. Nós é que temos as mãos livres."
O segundo ponto envolve a desagregação precoce do governo Temer. Um elemento é básico.
De volta a cena na Câmara de Deputados, Eduardo Cunha é a confirmação do grande logro. Mostra quem manda. Nomeia, demite, escolhe. Mandará cada vez mais. Não há opção para a "governabilidade" de Temer. Nem há remédio disponível para uma decepção desse tamanho. É engolir ou vomitar. 
Seria bondade excessiva falar em "trapalhadas" ou "desencontros." As paneladas não fazem barulho por acaso. O que se viu nesta primeira semana mostra um ponto mais profundo: uma incompatibilidade absurda entre o novo governo e a maioria do povo brasileiro, o que explica tantas idas e voltas, acertos, arranjos improvisados e piruetas que nada resolvem. Há causas profundas para este desacerto geral.
O primeiro é que se trata de um governo empossado sem um único voto popular, numa sociedade onde os valores democráticos são um elemento real da vida política, como se demonstrou pela resistência ao impeachment quando ficou claro que não prova de crime de responsabilidade contra
Dilma. Numa sociedade que preza a democracia,  isso é um problema grande, vamos combinar. Pode até ser parcialmente contornado, desde que haja humildade e bom senso dos governantes para entender a situação e admitir sua pequena margem de manobra.
O ponto aqui é demonstrar respeito, reverência, pelos detentores daquela frágil linha demarcatória que está sendo atravessada, a soberania popular. É pelo menos fingir que não se queria fazer isso, dar a impressão que não foi de propósito mas um puro acidente. Difícil, né?
Nascido numa imensa situação de fraqueza, num parto difícil, daquele tipo que médicos e parentes devem se perguntar a todo momento se o bebê sobreviverá – neste caso,  haverá efetivamente um segundo turno político –  o governo Temer quer implantar um projeto sem apoio na realidade política do país.
Tutelado pelas forças que permitiram a coleta de votos na Câmara e no Senado, um conjunto derrotados em todas eleições presidenciais desde 2002, não é capaz de dialogar com as necessidades urgentes da população nem com a realidade vivida pela maioria dos brasileiros e brasileiras. Num sintoma típico dos conchavos em ar condicionado,  sequer se deu ao trabalho de assumir o compromisso solene de abrir consultas amplas para sobre o que poderia fazer, na situação atual,
para melhor a  vida da maioria das pessoas -- o que é obrigação número 1 de qualquer candidato a político,  um simples problema de boa educação e bons modos nas democracias. 
Herdeiro de Dilma 2, cujo pecado político essencial foi abandonar o programa vitorioso nas urnas de 2014,  a proposta agora é radicalizar o que já deu errado. Não se questiona as pensões por morte nem o seguro desemprego que foram anunciadas em janeiro de 2015, colocando o governo Dilma na descida de uma ladeira de onde só deu sinal de recuperação depois que passou a denunciar um ataque a democracia. Temer foi direto na jugular: cortar o bolsa família, mexer na previdência, extirpar a CLT. O desemprego pode chegar a 14%, diz o ministro da Fazenda Henrique Meirelles, como se fosse uma fatalidade do destino. Não basta questionar o Mais Médicos. É preciso promover os planos privados de Saúde, que há décadas disputam um banquete de verbas públicas.
Na educação, marcada em anos recentes pela criação oportunidades para pobres e negros, é preciso colocar um inimigo das cotas para dirigir o ministério. Após uma década e meia de recuperação das energias da cultura, processo que permitiu uma reconstrução visível em várias áreas abandonadas ao Deus-mercado, o projeto é andar para trás, o que explica o desmonte do Ministério e a reação cívica da comunidade de artistas, inconformada com um retrocesso tão grande. Contra avanços na luta pela emancipação feminina e a igualdade de gêneros, que mudaram as referencias sociais e
políticas do país, reforçando traços de civilização necessários a toda  sociedade capaz de olhar para o futuro sem medo, a resposta é o fundamentalismo religioso, instrumentalizado para projetos políticos reacionários.   
Num país exausto do pensamento único assegurado pelo monopólio dos meios de comunicação,  a promove-se um ataque a EBC, aldeia pequena mas orgulhosa de seu histórico pela democratização da mídia, através do qual abriu uma pequena brecha para tentar assegurar o direito constitucional de cada cidadão de se informar com liberdade de escolha. 
Numa demonstração de respeito pelos sonhos das grandes maiorias,  nas melhores democracias a política sempre assume a forma de  um baile a fantasia. É uma forma de pudor. Neste Brasil de 2016,  é errado dizer que governo está sendo desmascarado. Exibe a arrogância de quem nunca achou necessário usar máscaras.
Governos em situação de desastre costumam iludir adversários, capazes de imaginar que irão desfazer-se por encanto, em função de desacertos sucessivos.
Mesmo um talento conhecido como Antonio Gramsci, capaz de deixar lições memoráveis sobre a luta política dos povos contra a opressão, foi capaz de imaginar que Benito Mussolini era pouco mais do que um líder folclórico, tão irracional que seria capaz de cair sozinho. Durou vinte anos.
A maioria dos comunistas alemães acreditou que a social-democracia era um inimigo pior do que o nazismo de Adolf Hitler. Nada fez para construir uma frente única contra o inimigo principal. As vésperas do 31 de março de 1964, uma parte dos aliados de Goulart achava que estaria protegido por comandantes militares leais ao presidente. Outra parte imaginava que a legalidade democrática era coisa do passado e que era necessário preparar a luta armada. O resultado dessas duas ilusões é bastante conhecido.
O inconformismo diante do governo Temer é o dado mais visível do momento político. Ao contrário do que se poderia imaginar, a disputa pelo poder ainda não saiu das ruas. É ali que as decisões tomadas em palácio  são questionadas, varias vezes por dia,  em protestos que se somam e até se amontoam. Vive-se a clássica situação em que os debaixo não suportam mais viver como antes – e os de cima não conseguem impor a vida de antes.
A pergunta é o que se faz num momento como este, até previsível, pelo sistema – lembrado no primeiro parágrafo – de golpe em dois turnos. As manifestações de rua vão prosseguir mas é enganoso acreditar que poderão continuar indefinidamente. Ou crescem, conseguem vitórias e abrem uma perspectiva mais ampla, assumindo o caráter de uma campanha política, com uma direção reconhecida e um alvo legítimo a ser alcançado. Ou se esvaziam, perdem força e orientação. Podem até ser reprimidas, numa escala sem a menor relação com operações policiais corriqueiras. Não é isso que se pode esperar de um governo que reconstruiu um Gabinete de Segurança Institucional para coordenar, através de um general da área de informação, as forças do aparato repressivo, inclusive civis.  
 No plano institucional, há um momento político decisivo, embora sem data marcada -- o julgamento de Dilma -- que irá concentrar  atenções e energias. A experiência ensina que o esforço de reverter a votação pode ser bem sucedido caso as forças comprometidas com a defesa da democracia sejam capazes de estabelecer sua unidade e agir de forma coordenada, demonstrando ao país quem fala pelo respeito a Constituição e suas garantias. Esta é a força que pode mudar o jogo no Senado e recuperar a democracia. Os oposicionistas de hoje que se atrevem a fazer planos estimulantes para 2018 ainda não entenderam que o calendário implica em passar por 2016. Em poucos dias de governo provisório, com mandato de validade de apenas 180, no máximo, se elevaram as pressões contra Luiz Inácio Lula da Silva, agravando os receios sobre seu destino e sua liberdade,  investigado por Sérgio Moro e acusado por Rodrigo Janot. José Dirceu recebeu uma pena de 23 anos, a maior da Lava Jato.
Num país onde a liberdade de expressão é uma garantia pétrea da Constituição, Dilma, que segue presidente da República, mesmo afastada, foi questionada -- quem sabe será criminalizada -- por dizer que foi vítima de um "golpe". Este é o horizonte, meus amigos. Imagine João Goulart ser
questionado, em 1964, por dizer que o golpe de 1 de abril poderia promover um "banho de sangue." Pense nos professores universitários sendo levados para interrogatório, forçados a ficar em posição de sentido e cantar o hino nacional para demonstrar que não eram "vermelhos."
Nós sabemos, desde a campanha pelas diretas-já, de 1984, que a democracia é o valor que unifica os brasileiros, hoje confrontados com uma realidade bem assinalada por mestre Jânio de Freitas: "a busca e a perseguição como política e prática geral, vista agora, só teve um precedente no Brasil: o poder instalado pelo golpe de 1964. Não comparadas as dimensões, a sanha é a mesma. Até a covardia que leva a demitir o garçom do gabinete presidencial, José Catalão, porque considerado petista, iguala essa gente de hoje à lá de trás. "
A luta é deste tamanho.

Este é o debate.
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