23 julho 2016

Uma crônica (antiga) minha para descontrair

Versos inconclusos
Luciano Siqueira

São muito próximas as mesas do bar ao lado do Restaurante Viena, no Aeroporto de Guarulhos. Apenas dois fregueses, ele e eu. Ele, sem bagagem, nem bilhete de viagem visível, zero preocupação com a hora, talvez na quarta ou quinta doze de uísque. Eu, saboreando uma Boêmia long kneck, atento ao relógio, aguardando o momento de embarcar num voo da Gol das vinte três horas com destino ao Recife.
Ao perceber meu interesse, disse chamar-se Floriano e mostrou-me um rabisco no avesso de uma embalagem de cigarro: “Parti para a mais cruenta das guerras/e apenas um olhar distante de lancinante indiferença/nem uma palavra, um aceno que me...”. – Um poema?, perguntei. “– Ah, amigo tenho os versos aqui no peito e não consigo botar no papel!”, respondeu, com a fala enrolada e os olhos faiscantes.
Tentou me explicar, com dificuldade. A voz grave, engolindo as sílabas, a muito custo mencionou alguém de quem esperava e não obteve a palavra amiga, solidária, afetuosa.
Com todo respeito a Antonio Maria, que dizia acreditar na sinceridade dos bêbados e dos poetas, aviso que os poetas têm de mim admiração e carinho; os bêbados, nem tanto.
Explico. Sem poesia a vida seria cinza e monótona. Os poetas são seres especiais – os grandes poetas e mesmo os médios e os apenas esforçados. Estes últimos tentam, e já é alguma coisa. Imagine se nossa existência em meioa verdades, mentiras, pelejas mil, amores e dores, desespero e esperança não pudesse ser iluminada jamais por um Drummond, um Vinícius, um Neruda, uma Cecília Meireles?
Já os bêbados seriam dispensáveis – sobretudo os chatos, barulhentos, conversadores, donos da verdade, tristes, eufóricos e inconvenientes.
Mas confesso que há um tipo de bêbado que exerce sobre mim uma atração irresistível, desperta um profundo sentimento de solidariedade: o bêbado solitário. Nada é mais comovente do que a imagem do cara ilhado, ele e o copo, ele e a desilusão, ele e o fracasso. Nunca vi alguém beber sozinho com alegria. Jamais recolhi de um desses o sorriso que não fosse de discreta vergonha, aquele sorriso sem graça de quem sofre e tenta dissimular.
Quando posso, me aproximo: um leve cumprimento, o olhar cúmplice à espera de um grunhido qualquer, um sinal de vida, um laivo de resistência.
Foi assim que travei o breve diálogo com Floriano, o bêbado autor do poema apenas iniciado.
-“Ficou um buraco deste tamanho aqui no peito, que dói, dói uma dor que não quer passar, entende?”
Eu disse “entendo, sim”, e me desculpei por não poder continuar a conversa, tinha chegado a minha hora. Mas a vontade era de retardar a minha viagem, quem sabe depois de mais uma dose ele viesse a completar os versos amargos e aliviar o sentimento de desamor e perda. 

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