11 outubro 2016

Cinema de resistência

ENTRE GOLPES
À luz das turbulências democráticas no país, cinema revisita a ditadura militar
Em obras como Tatuagem e Amores de chumbo, realizadores pernambucanos se dispuseram a abordar o tema com vários enfoques
Diario de Pernambuco/Viver 8/10/2016
Em um período político brasileiro tão delicado, em que a palavra "golpe" aparece carregada de significado, o audiovisual contribui para a reflexão sobre o passado e ajuda a construir o futuro. Produções recentes ou em processo de lançamento apresentam a ditadura militar brasileira sob novos olhares e constatam como a memória do período ainda precisa ser evocada. Realizadores pernambucanos também se dispuseram a abordar o tema com vários enfoques, do premiado Tatuagem, de Hilton Lacerda, até a série de TV Histórias de fantasmas verdadeiros para crianças, de Mariana Lacerda, em desenvolvimento de roteiro.
Em comum, há a sensação de conexão com uma contemporaneidade que eles nem imaginavam há pouco tempo. É o que diz Tuca Siqueira, que finaliza o longa Amores de chumbo. "O filme nasceu em 2008 e nunca imaginávamos que iríamos viver um golpe neste ano. É muito surreal para gente e fico imaginando em qual momento social ele vai ser lançado".
O filme se passa nos dias de hoje, e o triângulo amoroso entre os personagens é diretamente afetado pelas consequências da ditadura. Ela também dirigiu os documentários Eu vou contar para os meus filhos e A mesa vermelha, com depoimentos de 23 presos políticos do regime. "Acho que a maior parte do filme trata o período por uma linha mais histórica. Depois que escutei as pessoas nesses dois documentários, me despertou olhar forte para essas pessoas que viveram aquele período e que estão aqui hoje. Todo mundo se transformou em alguma coisa e se tornou alguém", diferencia. "Em Amores de chumbo, são mostradas pessoas extremamente ativas, mas elas, ao mesmo tempo, carregam um peso muito forte do que viveram no regime militar. São duas histórias de amor para três amantes e eles percebem que ainda têm questões a resolver".
Tatuagem (2013) se passa em 1978, mas essa conexão com o futuro e com questões de gênero e sexualidade são sublinhadas a partir das escolhas do diretor. Para Hilton, "a intenção é ter um diálogo bastante contemporâneo e construir uma ponte entre passado e futuro que, na verdade, é o presente. São momentos diferentes, mas acho que vivemos angústias muito parecidas. Uma coisa importante desse tipo de projeto é trazer essa memória para a superfície, porque ela é facilmente diluída no Brasil. Quando se fala em ditadura, parece uma coisa abstrata".
O próprio circuito cinematográfico de produção e distribuição, ele diz, é um setor crucial para que os novos olhares cheguem ao público."O problema é que a gente corre o risco de ser desarticulado rapidamente. O cinema distribui renda e não sabemos até onde os grandes produtores estão interessados nesse poder de olhar. O circuito comercial é bastante político e tratar isso de forma diferente é um erro", alerta o cineasta.
Para os filmes em desenvolvimento, a situação política do Brasil tem camada ainda mais profunda de significado às ideias. A busca por uma visão particular sobre a ditadura se torna tarefa mais urgente. Mariana Porto vai filmar o longa Fragmentos de um silêncio, inspirado na história de Umberto Albuquerque Câmara Neto, militante de esquerda que contribuiu com críticas de cinema para o Diario.
Trazer para o presente uma faceta desse passado que o Brasil parece ter deixado de reconhecer é um dos objetivos dela, também professora da UFPE. "Via filmes sobre a ditadura e isso me deixava com um sentimento profundo de pesar e mãos atadas, porque várias obras não construíam essa ligação com o hoje e eu via que, na verdade, tudo se mistura na sociedade atual", observa.
O filme será ambientado em 2014 e trará personagens ligados tanto a uma militância mais jovem quanto a uma milícia privada. Os papéis, segundo Mariana, são desdobramentos de uma situação vista ainda na ditadura. “O gesto primordial do filme era superposição de mapas geopolíticos no Brasil. O roteiro é uma ficção em que o personagem de Umberto é um fantasma. Ele é um estado de busca que o protagonista, que teria a mesma idade dele se estivesse vivo”.
A cineasta Mariana Lacerda idealizou a série de TV Histórias de fantasmas verdadeiros para crianças, para trazer a memória a um público normalmente ignorado quando se fala de produções audiovisuais sobre a ditadura. A ideia é fazer quatro episódios de 26 minutos. "Tenho duas filhas, de 6 e 7 anos, e percebo que os conteúdos da TV brasileira para crianças são aquém do que poderiam. Elas não podem viver isoladas do mundo. Essa é a história delas, do país onde vivem. Precisamos explicar isso", defende. "Me perguntaram: 'como você vai explicar o que é um pau-de-arara a uma criança?' Respondi: 'explicando'. Quando a resposta é imbuída de afeto, é muito passível de compreensão", acredita Mariana. "Vou me reunir com um consultor pedagógico para a gente saber o limite e não traumatizar as crianças", planeja a cineasta.
RECENTES - O documentário Retratos de identificação, dirigido pela professora Anita Leandro e lançado em 2014, usou o acervo fotográfico do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) da Guanabara, do Serviço Nacional de Informações (SNI) e do Superior Tribunal Militar para reconstituir a trajetória de quatro guerrilheiros. Antônio Roberto Espinosa e Reinaldo Guarany, ainda vivos, falam sobre o próprio passado e contam a história de Maria Auxiliadora Lara Barcellos, que se suicidou no exílio em Berlim, na Alemanha, e Chael Schreier, morto enquanto era torturado.
Em Trago comigo, de 2015, a diretora Tata Amaral mostra a história de Telmo (interpretado por Carlos Alberto Riccelli), diretor de teatro que monta espetáculo sobre a resistência à ditadura militar, mas é confrontado pelo elenco da peça, muito jovem, e que não tem conhecimento histórico a respeito dessa passagem do país.
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