27 novembro 2016

A saga de um povo

Fidel Castro, a revolução cubana e a América Latina
Luiz Alberto Moniz Bandeira

Quando o ditador Fulgêncio Batista, sem mais condições de manter-se no poder, renunciou durante o reveillon de 1959 e, secretamente, fugiu de Cuba para a República Dominicana, não foi só o seu governo que caiu. Todo o Estado cubano se havia desintegrado e 1959 tornou-se um ano realmente novo. Dias depois, centenas de guerrilheiros barbudos, grande parte de guajiros (trabalhadores do campo), sujos, uniformes rasgados, entraram em Havana, sob o comando de Fidel Castro, Ernesto Che Guevara e Camilo Cienfuegos.  Era o clímax de uma jornada, iniciada por apenas 16 sobreviventes, dos 82 revolucionários que desembarcaram do iate Granma, no litoral Cuba, em 2 de dezembro de 1956.  Fidel Castro tinha então 30 anos e, durante dois anos, comandou a guerra de guerrilhas, juntamente com seu irmão Raúl Castro, Ernesto Che Guevara e Camilo Cienfuegos, organizando o Exército Rebelde, que destruiu a ditadura do sargento Fulgencio Batista, respaldada pelos Estados Unidos.
A revolução cubana foi o fato político mais poderoso e o que maior impacto causou na América Latina, ao longo da segunda metade do século XX, não por causa do seu caráter heróico e romântico ou porque o regime implantado por Fidel Castro evoluiu posteriormente para o comunismo, mas porque ela exprimiu dramaticamente as contradições não resolvidas entre os Estados Unidos e os demais países da região. Não foram os comunistas que promoveram a revolução cubana, no contexto da na Guerra Fria. Conquanto alguns de seus líderes, como Ernesto Che Guevara e o próprio Fidel Castro, em pequena medida, acolhessem idéias marxistas, eles não pertenciam a nenhum partido comunista e não era inevitável que a revolução cubana se desenvolvesse a tal ponto de identificar-se com a doutrina comunista e instituísse a sua forma de governo. Com razão, o historiador Thomas Skidmore, da Brown University, apontou Cuba como “um estudo clássico do fenômeno nacionalista”, acrescentando que o povo podia ver o caráter autoritário do regime, mas “o real apelo do regime de Castro era o nacionalismo”. Com efeito, a revolução cubana foi autóctone, teve um caráter nacional e democrático, e a  implantação de um regime segundo o modelo dos países do Leste Europeu resultou de uma contingência histórica, não de uma política empreendida pela União Soviética, ma, sim, empreendida pelos Estados Unidos que, sem respeitar os princípios da soberania nacional e autodeterminação dos povos, não aceitaram os atos da revolução, como a reforma agrária, e transformaram contradições de interesses nacionais em um problema do conflito Leste-Oeste.
Em abril de 1959, quatro meses após a tomada do poder em Havana, Fidel Castro esteve em Buenos Aires, a fim de participar conferência do Comitê dos 21, organismo encarregado de estruturar a Operação Pan-Americana, e seu discurso, segundo o então presidente Juscelino Kubitschek, refletiu “melhor do que os demais a tragédia da América Latina”, dada a crueza que ressaltava de suas palavras. Causou “verdadeiro impacto” ao reclamar dos Estados Unidos uma ajuda financeira à América Latina, no valor de US$ 30 milhões. Kubitschek, após conversar com Fidel Castro em Brasília e ter “a oportunidade de conhecer, em profundidade, seu pensamento”,  concluiu que ele era  “um idealista amargurado, que sofrera na carne as conseqüências do apoio dado pelos Estados Unidos às ditaduras na América Latina”, uma vez que  Cuba fora marcada por “longa tradição de tirania” e seu  povo, havendo suportado “o garrote do regime de Batista, não conseguia separar a trágica realidade da situação interna do apoio irrestrito de Washington ao opressor do país”.
Ao regressar de Buenos Aires, Fidel Castro passou pelo Rio de Janeiro e fez um discurso na Praça Barão Rio Branco, organizado pela União Nacional dos Estudantes (UNE) e no qual repetiu basicamente o que dissera em Buenos Aires: “Ni pan sin liberdad ni libertad sin pan”.  Lembro-me bem destas suas palavras, pois estava ao seu lado no palanque, na Esplanada do Castelo. E, em Havana, Fidel Castro voltou a reiterar que “la ideología de nuestra revolución es bien clara; no solo ofrecemos a los hombres libertades sino que le ofrecemos pan. No solo le ofrecemos a los hombres pan, sino que le ofrecemos también libertades”. Ao longo do discurso, durante o qual tratou de definir a ideologia da revolução, Castro, após salientar que no mundo se discutiam duas concepções, a que oferecia aos povos democracia e matava-os de fome e a que oferecia pão, mas lhes suprimia as liberdades, afirmou:
“Nosotros  nos vamos poner a la derecha, no nos vamos poner a la izquierda, ni nos vamos poner en el centro, que nuestra Revolución no es centrista. Nosotros no vamos poner un poco más adelante que la derecha y que la izquierda. Ni a la derecha  ni a la izquierda, un paso más allá de la derecha y de la izquierda”.
Em abril de 1960, quando estive em Havana, acompanhando Jânio Quadros, então candidato à presidência do Brasil, vi Fidel Castro mostrar-lhe um crucifixo que trazia pendurado no pescoço, indicando que não era comunista e que respeitava a Igreja. Mas, um ano depois, em 16 de abril de 1961, após o bombardeio dos aeroportos de San Antonio de los Baños, Santiago e Havana  pelos aviões da CIA, Fidel Castro, após compará-lo, com justo motivo, ao ataque  pérfido e traiçoeiro do Japão a Pearl Harbor, em 1941, declarou que  os Estados Unidos não perdoavam Cuba porque “esta es la revolución socialista y democrática de los humildes, con los humildes y para los humildes”.
Ao fazer essa declaração, Fidel Castro buscou comprometer a União Soviética na defesa de Cuba. Ele jogou com o conflito político e ideológico que então eclodira entre Moscou e Pequim e dividira o Bloco Socialista, pois temia que Nikita Kruchiov, na linha coexistência pacífica e em entendimento com John Kennedy, trocasse Cuba por Berlim Ocidental, em prol de melhores relações com os Estados Unidos. A proclamação do caráter socialista da revolução cubana, porém, representou igualmente duro golpe nos dogmas cristalizados por Joseph Stalin e outros líderes comunistas, sob o rótulo de marxismo-leninismo, uma vez que ela fora realizada não por um partido supostamente operário, constituído sob as normas do chamado centralismo-democrático e rotulado de comunista, mas pelo Movimento 26 de Julho, uma organização composta, sobretudo, por elementos das classes médias, que, no curso da guerra de guerrilhas, passaram a incorporar camponeses e trabalhadores rurais, os guajiros, ao Exército Rebelde, em benefício dos quais realizaram a  reforma agrária.
De conformidade com a ortodoxia stalinista, Cuba não tinha condições materiais senão para realizar uma revolução agrária e democrática, mediante a instalação de um “governo patriótico”, de união com a burguesia progressista, que se propusesse a impulsionar o processo de industrialização e, libertando o país do domínio imperialista, promover o desenvolvimento econômico e a emancipação nacional. Os dirigentes comunistas, que visitavam Havana, consideravam a revolução em Cuba estranha ao modelo, por eles reconhecido, dado lá não existir um operariado industrial, e julgavam Fidel Castro e seus companheiros um “grupo inexperiente, com formações ideológicas diversas e pouco definidas”, orientados  pelo que qualificaram como “marxismo amador, ou melhor ainda, como cubanismo”. Ouvi quando Luiz Carlos Prestes, então secretário-geral do PCB, qualificou Fidel Castro como “aventureiro”, em entrevista à imprensa do Rio de Janeiro, em 1959.
Mas o nacionalismo representou, ao longo da história de Cuba, importante fator de coesão e permitiu que o governo revolucionário pudesse manter suficiente apoio popular, em meio a todas as vicissitudes. E a presença de Fidel Castro continuasse a projetar sua influência, antes mesmo de delegar, provisoriamente, o poder ao seu irmão Raúl, em 31 de julho de 2006 a fim de submeter-se a uma intervenção cirúrgica no colo intestinal, ele já não era imprescindível ao funcionamento do governo e do regime. A sucessão já havia acontecido e pouca gente percebera. O poder havia passado para uma nova geração de dirigentes, com Raúl Castro no comando das Forças Armadas; Ricardo Alarcón, hábil negociador e perito em relações com os Estados Unidos, na Assembléia Nacional; Carlos Lage, como primeiro-ministro, controlando a economia do país; e Felipe Pérez Roque, na condução da política e das relações exteriores, mantendo extraordinário apoio internacional a Cuba. Era somente o herói nacional, ao lado de José Martí. E não apenas o herói nacional.
Sua renúncia à presidência de Cuba, após longo período de convalescença, não surpreende. Era esperada.   Mas o fato de que permaneceu quase meio século no poder, a enfrentar e resistir ao embargo e a todas as agressões do Império - invasão, sabotagens e, inclusive, dezenas de tentativas de assassinato pela CIA - constituiu a maior derrota política que os Estados Unidos sofreram, não obstante seu imenso poderio econômico e militar, o maior de todos os tempos. Fidel Castro, o mais importante líder da América Latina, no século XX, tornou-se o símbolo de uma era. E o fato de que o presidente Barack Obama reatou as relações diplomática com Cuba, após 53 anos desde que o presidente Dwight Eisenhower as rompeu (janeiro de 1961) constitui mais uma de suas vitórias. A Revolução Cubana triunfou. O Império Americano tudo tentou. Porém jamais conseguiu destrui-la. E Fidel Castro, ainda que morrendo, continua vivo como herói e símbolo da maior epopéia da América Latina no século XX.
Luiz Alberto Moniz Bandeira é cientista político, professor emérito da Universidade de Brasília e autor de mais de 20 obras, entre as quais De Marti a Fidel: a Revolução Cubana e a América Latina, Formação do Império Americano e A Segunda Guerra Fria.

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